domingo, 9 de janeiro de 2011

Era uma vez num campinho de serragem


Das mais remotas lembranças da minha infância, que de certa forma contribuíram para moldar os meus traços psicológicos, resgato um dia de brincadeiras no campinho de serragem. As peladas começavam sempre ao cair da tarde e se estendiam até o escurecer. Era um campinho de serragem, ligeiramente inclinado, de tal sorte que a vantagem maior nem era ser a melhor equipe, mas ganhar o par-ou-ímpar, pois o vencedor escolheria a parte de cima, é claro, e já largava em vantagem. Raramente eu jogava naquelas peladas, ficava brincando nos arredores com os que ficavam de fora das escolhas. Talvez por ser muito pequeno, mas também por não pertencer aos mais iguais. Mas isso não importava, eu era feliz. Assim foi também naquele dia. Ficamos ali nas brincadeiras de meninos de idade entre 9 e 10 anos, simulávamos brigas, empurrões. De saldo, restaram camisas rasgadas, calções pendurados e arranhões por todo o corpo.

Voltei para casa esfarrapado daquelas brincadeiras. Para muitos, roupas alinhadas e de marca podem significar bastante, para mim, naquele tempo, a felicidade se chamava roupa rasgada. Era sinal de que aquele dia tinha valido a pena. Mas não para meu pai, que me esperava apreensivo. Sondado sobre quem teria feito aquilo em minhas roupas, titubeei. A resposta poderia representar um laço sem tamanho, que nem minha mãe poderia ajudar. Lancei mão de um artifício sorrateiro. O culpado teria sido um rapaz mais velho, que costumava bater nos meninos da serragem. Meu pai quis saber onde morava o fulano, acertaria as contas. Vacilei pela segunda vez, aleguei não saber direito quem era e nem onde morava, já temendo pelo pobre inocente.

Daquele episódio ficaram marcas. Das coisas que considerava inocentes e irrelevantes, para meu pai, poderiam ser graves. Eu não tinha capacidade suficiente para entender isso. A autoridade exercida, naquela medida, impediu que eu relatasse abertamente o ocorrido. O tempo o tornaria mais tolerante, mais compreensivo, e menos autoritário. Talvez o menor fardo sobre seus ombros também tenha ajudado nessa transformação. Hoje, conhecendo os fatos que cercavam o seu cotidiano, daquela época, aos quais se somava a esposa enferma, posso compreender melhor, mas o menino rebelde que se formava não tinha essa capacidade de discernimento. Não era capaz de relativizar, muito menos de contemporizar. O que de fato sabia era que as nicas ou bolinhas de gude, que faziam a felicidade nas tardes descompromissadas da minha infância, enfureciam meu pai, que as jogava pela janela.

A vida longa de meu pai permitiu que eu acompanhasse sua transformação. Sua mente aberta e o autoconhecimento, por certo, possibilitaram essa transformação. Aprendi, então, que a metamorfose ambulante não é uma dádiva que vem dos céus, é um objetivo a ser alcançado. Houve um hiato de relacionamento entre nós. Um dia vou engendrar minha teoria sobre esse tempo, que não foi pouco. Por ora, vou incubando a semente.

A dificuldade acentuada em me submeter a ordens, em que se perceba qualquer resquício de autoritarismo, remonta a esse tempo. Conhecendo a origem, posso melhor entender a mim mesmo. Tudo porque o campinho era de serragem.

Viagens imaginárias com os tripulantes em torno da mesa de jantar.